Poetismo

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Localização: Barcelos, Minho, Portugal

Apetece-me espetar palavras. Sim, é esse o verbo. Apetece-me espetá-las com fúria só para dizer que escrevo com convicção. Não... Só para dizer que me liberto. Sim, é isso.

domingo, julho 24, 2005

Quando


Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta

Cantinuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão de bailar
as quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,

Haverá longos poentes sobre o mar,

Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, julho 18, 2005

Quando as crianças brincam...

Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.

E toda aquela infância
Que não tive me vem
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma
E quem serei visão
Quem sou ao menos sinta
Isto no meu coração.

Fernando Pessoa

sábado, julho 09, 2005

Todos os homens são maricas quando estão com a gripe

Pachos na testa
terço na mão
uma botija
chá de limão
zaragatoas
vinho com mel
três aspirinas
creme na pele
grito de medo
chamo a mulher
ai Lurdes Lurdes
que vou morrer
mede-me a febre
olha-me a goela
cala os miúdos
fecha a janela
não quero a canja
nem a salada
ai Lurdes Lurdes
não vales nada
se tu sonhasses
como me sinto
já vejo a morte
nunca te minto
já vejo o inferno
chamas diabos
anjos estranhos
cornos e rabos
vejo os demónios
nas suas danças
tigres sem listras
bodes de tranças
choros de coruja
risos de grilo
ai Lurdes Lurdes
que foi aquilo
não é chuva
no meu postigo
fica comigo
não é o vento
a cirandar
nem são as vozes
que vêm do mar
não é o pingo
de um torneira
põe-me a santinha
à cabeceira
compõe-me a colcha
fala ao prior
pousa o Jesus
n oconbertor
chama o doutor
passa a chamada
ai Lurdes Lurdes
nem dás por nada
não te levantes
que fico só
aqui sozinho
a apodrecer
ai Lurdes Lurdes
que vou morrer.

António Lobo Antunes

domingo, julho 03, 2005

Insónia

Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel que a delirar me obriga.

E vós, ó cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar o meu coração de horrores.

[Bocage]

sexta-feira, julho 01, 2005

Pudesse eu morrer hoje como tu me morreste nessa noite


Pudesse eu morrer hoje como tu me morreste nessa noite-

e deitar-me na terra; e ter uma cama de pedra branca e
um cobertor de estrelas; e não ouvir senão o rumor das ervas
que despontam de noite, e os passos diminutos de insectos,
e o canto do vento nos ciprestes, e não ter medo das sombras,
nem das aves negras nos meus braços de mármore,
nem de ter perdido - não ter medo de nada. Pudesse

eu fechar os olhos neste instante e esquecer-me de tudo-
das tuas mãos tão frias quando estendi as minhas nessa noite,
de não teres dito a única palavra que me faria salvar-te, mesmo
deixando que eu perguntasse tudo; de teres insultado a vida
e chamado pela morte para me mostrares que o teu corpo
já tinha desistido, que ias matar-te em mim e que era tarde
para eu pensar em devolver-te os dias que roubara. Pudesse

eu cair num sono gelado como o teu e deixar de sentir a dor,
a dor incomparável de te ver acordado em tudo o que escrevi-
porque foi pelo poema que me amaste, o poema foi sempre
o que valeu a pena ( o mais eram os gestos que não cabiam
nas mãos, os morangos a que o verão obrigou); e pudesse

eu deixar de escrecer nesta manhã, o dia treme na linha
dos telhados, a vida hesita tanto, e pudesse eu morrer,
mas ouço-te a respirar no meu poema.


Maria do Rosário Pedreira

Soneto do Cativo

Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias
tão longe da verdade ou da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

David Mourão-Ferreira