Poetismo

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Localização: Barcelos, Minho, Portugal

Apetece-me espetar palavras. Sim, é esse o verbo. Apetece-me espetá-las com fúria só para dizer que escrevo com convicção. Não... Só para dizer que me liberto. Sim, é isso.

domingo, junho 26, 2005

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio das quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro,
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
Já se não passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade, Poesia em Verso e Prosa

quinta-feira, junho 16, 2005

A uma ausência

Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta;
O mal, queme consome, me sustenta,
O bem, que me entretém, me dá cuidado;

Ando sem me mover, falo calado,
O que mais perto vejo se me ausenta,
E o que estou sem ver mais me atormenta,
Alegro-me de ver-me atormentado;

Choro no mesmo ponto em que me rio,
No mor risco me anima a confiança,
Do que menos se espera estou mais certo;

Mas se de confiado desconfio,
É porque entre os receios da mudança
Ando perdido em mim, como em deserto.

António Barbosa Bacelar

segunda-feira, junho 13, 2005

Adeus


Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;

Como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.

Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.

Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.


Em Homenagem a Eugénio de Andrade.


1923-2005

domingo, junho 12, 2005

Viver não dói

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas
e não se cumpriram.
Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer,
apenas agradecer por termos conhecido
uma pessoa tão bacana,
que gerou em nós um sentimento intenso
e que nos fez companhia por um tempo razoável,
um tempo feliz.
Sofremos por que?
Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer
pelas nossas projeções irrealizadas,
por todas as cidades que gostaríamos
de ter conhecido ao lado do nosso amor
e não conhecemos,
por todos os filhos que
gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,
por todos os shows e livros e silêncios
que gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados,
pela eternidade.
Sofremos não porque
nosso trabalho é desgastante e paga pouco,
mas por todas as horas livres
que deixamos de ter para ir ao cinema,
para conversar com um amigo,
para nadar, para namorar.
Sofremos não porque nossa mãe
é impaciente conosco,
mas por todos os momentos em que
poderíamos estar confidenciando a ela
nossas mais profundas angústias
se ela estivesse interessada
em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu,
mas pela euforia sufocada.
Sofremos não porque envelhecemos,
mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós,
impedindo assim que mil aventuras
nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e
nunca chegamos a experimentar.
Como aliviar a dor do que não foi vivido?
A resposta é simples como um verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo,
mais me convenço de que
o desperdício da vida
está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoista que nada arrisca,
e que, esquivando-nos do sofrimento,
perdemos também a felicidade.
A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional.


Carlos Drummond de Andrade

sábado, junho 11, 2005

E Tenebris

Come down, O Christ, and help me! reach thy hand,
For I am drowning in a stormier sea
Than Simon on thy lake of Galilee:
The wine of life is spilt upon the sand,
My heart is as some famine-murdered land,
Whence all good things have perished utterly,
And well I know my soul in Hell must lie
If I this night before God’s throne should stand.
“He sleeps perchance, or rideth to the chase,
Like Baal, when his prophets howled that name
From morn to noon on Carmel’s smitten height.”
Nay, peace, I shall behold before the night,
The feet of brass, the robe more white than flame,
The wounded hands, the weary human face.

[Oscar Wilde]

quarta-feira, junho 08, 2005

Pôs-se o Sol; como já na sombra feia...

Pôs-se o Sol; como já na sombra feia
Do dia a pouco e pouco a luz desmaia!
E a parda mão da noite, antes que caia,
De grossas nuvens todo o ar semeia.

Apenas já diviso a minha aldeia;
Já do cipreste não distingo a faia.
Tudo em silêncio está. Só lá na praia
Se ouvem quebrar as ondas pela areia

Com a mão na face a vista no céu levanto
E, cheio de mortal melancolia,
Nos tristes olhos mal sustenho o pranto;

E se ainda algum alívio ter podia,
Era ver esta noite durar tanto!
Que nunca mais amanhecesse o dia.

João Xavier de Matos

sábado, junho 04, 2005

Poema à boca fechada


Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


In Os poema possíveis - José Saramago